Lembro-me como se fosse hoje do momento em que entreguei a primeira peça processual ao meu ilustre patrono para revisão antes de ser submetida ao Tribunal. E mais ainda do que me disse quando me exigiu que refizesse integralmente o trabalho: “O Senhor Doutor escreve muito bem mas de tudo o que deixou escrito pouco ou nada se aproveita. Sabe nós não escrevemos assim…”. Aquele veredito pareceu-me ao tempo profundamente injusto em face das desmesuradas horas que havia dedicado à elaboração da peça e ao atrevimento próprio da juventude de me julgar bem melhor do que o traço vermelho na diagonal da página fazia supor.
Desde então amadureci e repliquei uma técnica de escrita mais próxima do cânones do juridicamente correto, mas sem nunca deixar de me interrogar sobre o que fazem de uma peça processual, de um parecer ou até um e-mail a um cliente bem escritos. Confesso até que sempre achei a tarefa de rever um texto escrito por outrem um exercício de policiamento muito desanimador, uma vez que por mais bem escrita que a coisa se me apresente sempre faria de modo diferente. Mas com o passar dos anos e a chegada prematura dos cabelos brancos fui percebendo que muitas vezes mais importante que a mensagem em si é a forma como ela é percebida pelos nossos destinatários, seja um juiz, um colega ou um cliente atentos ou mesmo um burocrata iletrado com mau feitio. E daí a necessidade de submeter todos os escritos jurídicos a um segundo par de olhos por forma a dar uniformidade, coerência e clareza a textos escritos a várias mãos. E a razão que assistia ao meu velho patrono…
Para lá de todo o subjetivismo numa coisa estaremos de acordo: expressar o pensamento sem obscuridade é uma arte, que exige muito exercício, até que o redator apresente uma escrita simples, com frases curtas e objetivas, de fácil compreensão para o leitor. Escrever bem é escrever com concisão, ser objetivo, direto, não repetir ideias ou palavras e não alongar o texto desnecessariamente.
É claro que o que fica escrito é precisamente o contrário da prática corrente e não me levarão mal as honrosas exceções quando digo que se escreve muito mal na judicatura, na advocacia, no notariado (para não falar das pérolas linguísticas com que nos brindam certos agentes de execução e administradores de insolvência). Muito mal, há 20 anos quando saído dos bancos da Faculdade enfrentei o escrutínio inclemente do meu patrono, e muito mal nos dias de hoje… E as diferenças são tão gritantes que diremos termos passado de 80 a 8 sem dar conta. Então praticava-se a eloquência herdada da Retórica Clássica, das composições frásicas germanófilas às citações em latim. Atualmente, na era da Internet e do ‘Dr. Google’, boa parte dos profissionais do Direito usam o motor de pesquisa para encontrar ‘modelos’ para a peça jurídica que precisam redigir. Passámos em duas décadas do fino recorte literário e das transcrições exageradas do texto da lei, doutrina e jurisprudência ao plagio descarado e ao empobrecimento semântico dos atuais operadores do direito, que por lerem pouco possuem restrito repertório lexical. Parece incrível que alguns recém licenciados e candidatos à advocacia tenham dificuldade em articular uma frase completa que não seja ‘copiada’ e ‘colada’. Ou que justifiquem esta prática com a constatação tantas vezes injusta de ‘os juízes não lêem porque têm milhares de processos e formam a convicção sem escutar ninguém’ (afirmação que verídica nalguns poucos infelizes casos mais não é do que a própria negação da profissão que decidiram abraçar). E que no final do dia façam em causa própria o pobre julgamento de se considerar ‘a geração mais qualificada de sempre‘.
O problema não é evidentemente só deles. As Universidades não formam para a prática e deixaram há muito de ser culturalmente estimulantes. Os exames da Ordem não são suficientemente exigentes (apesar de alguma evolução recente) e faz-se o estágio tantas vezes sem praticar sufientemente (apesar da longa duração do estágio). Os patronos não têm tempo ou temem a concorrência dos mais novos. Mas o pior é que todos somos culpados quando convivemos bem com sentenças e despachos ininteligíveis e peças sem pés nem cabeça. Até virou moda partilhar algumas dessas aberrações jurídicas no Facebook como graçola, ao invés da reprovação que uma cultura de exigência nos obrigaria. Mas para lá da espuma dos dias, duas coisas não mudaram significativamente nestes tempos do online: a escrita é sempre um ato solitário e é a escrever mal que se aprende a escrever bem. Por isso o meu conselho para os mais novos é mandar às ortigas às críticas mais ou menos injustas/ferozes e escrever muitas vezes. Seja num blog ou numa mera hashtag. Sem outro compromisso que não seja para com a verdade que a isso nos exige a profissão.
Foto por hannah grace em Unsplash
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