O regime jurídico dos baldios tem vindo historicamente a sofrer constantes mutações, caracterizado pela dificuldade de caracterização da sua figura jurídica. De terrenos coletivos de propriedade comunal, a variantes de domínio privado, a única constante que se firmou desde os seus primórdios foi o seu domínio coletivo. A sua origem acha-se na necessidade que os povoadores livres de uma aldeia rural, vivendo da exploração familiar, tinha de dispor de vastos espaços incultos, onde pudessem encontrar as utilidades complementares da atividade agrária.
Os Baldios são terrenos não individualmente apropriados, destinados a servir de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação ou de um grupo de povoações, propostos à satisfação de certas necessidades individuais. São administrados pelos respetivos compartes nos termos dos usos e costumes ou através órgãos democraticamente eleitos. As comunidades locais organizam-se e elegem para atos de representação, disposição, gestão e fiscalização uma assembleia de compartes, um conselho diretivo e uma comissão de fiscalização. Em caso de vazio organizacional, poderá a título excecional a Junta de Freguesia ser igualmente a administradora do espaço nos casos em que os compartes ainda não se tenham organizado (administração transitória) ou propondo-se a Órgão Gestor e eleita democraticamente numa assembleia de compartes.
A figura dos Baldios sempre suscitou dúvidas quanto aos termos da sua aquisição e transmissão, por força da sua natureza ímpar. A possibilidade de adquirir, expropriar e/ou arrendar um Baldio, bem como a sua exploração económica a título de 3º, vem-se questionando desde a Idade Média, enfatizando-se de forma notório durante as primeiras codificações portuguesas, variando as respostas a estas questões, em maior ou menor grau, ao longo do tempo.
A evolução da relação jurídica dos baldios, motivada pela diferença entre estes e o conceito contemporâneo de coisas públicas, sofreu diversas caracterizações distintas ao longo da sua existência. Na vigência do Código de Seabra 1867, os baldios eram tidos pela doutrina civilista da época, como integrando a propriedade pública das autarquias locais, podendo entrar no domínio privado por desafetação, erguendo-se, no entanto, algumas vozes contrárias a este entendimento, como a de Marcello Caetano e Rogério E. Soares.
A doutrina de que os baldios são patrimónios de afetação especial, pertencentes às autarquias só surgiu em resultado do Código Civil de 1966 ter acabado com a repartição tripartida das coisas e dar uma definição única de “coisa” – artigo º202 do Código Civil – com a intenção de deixar claro que as coisas do domínio público não podem ser objeto de direitos privados.
No domínio do atual do Código Civil, foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender genericamente que tais bens eram suscetíveis de apropriação e de usucapião (antiga prescrição aquisitiva), não obstante a existência de algumas vozes discordantes.
Isto até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro que, no seu artº 2º, estatuiu:
“Os terrenos baldios, encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião”.
Esta norma encontra-se em consonância com um dos princípios fundamentais da organização económica: o sector comunitário – artigo 82 n. 4 alínea b), da Constituição da República Portuguesa -, o qual abrange os meios de produção possuídos e geridos por comunidades territoriais sem personalidade jurídica (“povos”, “aldeias”), sendo o caso mais relevante, mas não único, o dos baldios, “que se apresenta como uma figura específica, em que é a própria comunidade enquanto coletividade de pessoas, que é titular da propriedade dos bens, bem como da respetiva gestão, pelo que o Estado não pode apossar-se nos termos em que o pode fazer em relação ao sector privado ou cooperativo” (G. Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3. edição, revista, página 406).
A partir do advento deste diploma legal, aliás em consonância com o texto da Lei Fundamental na altura (artº 89º da CRP/76) e até hoje, os baldios são insuscetíveis de apropriação privada. Ademais, a Jurisprudência atualista, em face das constantes alterações legislativas quanto à Lei n.º 68/93, de 04 de Setembro, tem vindo a manter-se inalterável na defesa dos Baldios como “figura específica, em que é a própria comunidade, enquanto coletividade de pessoas que é titular da propriedade dos bens, e da unidade produtiva, bem como da respetiva gestão, no quadro do artigoº 82, nº4, alínea b) da CRP”. (Supremo Tribunal de Justiça, Pº 00A342, Relator Exmo. Conselheiro Pinto Monteiro).
Deste modo, entre a publicação do Código Civil de 66 até ao Decreto-Lei acima identificado, assistimos a um período em que a figura dos Baldios, por falta regulamentação legislativa, se apresenta como um bem comum, passível de aquisição privada, incluindo por usucapião, consagrando-se apenas essa mesma proibição em momento posterior. Conforme se diz no artigo 2 do Decreto-Lei n. 39/76, os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação privada por qualquer forma ou titulo, incluída a usucapião.
Assim, é conformador que, em conjugação com o disposto no artº 82º CRP, o artº 1º nº1 da Lei dos Baldios (Lei nº 68/93 de 4/9) define os baldios como os terrenos possuídos ou geridos pelas comunidades locais, para, a seguir, no artº 4º nº1, acrescentar que os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, mantendo-se inalienáveis por natureza, estatuto que mantiveram desde a publicação dos DL nº 39/76 e 40/76, ambos de 19 de Janeiro.
Como é sabido, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, o Direito de Propriedade não se extingue pelo não uso e, para que 3ºs o possam adquirir, por Usucapião, deve ser demonstrada o exercício da posse com intenção aquisitiva e em nome próprio, exigindo-se que a mesma perdure durante, pelo menos, 20 anos, de forma pública e pacífica, já que só a posse titulada e considerada de boa-fé vê esse período reduzido a 15 anos.
Ora, mesmo cumprindo os pressupostos acima referidos por parte de quem se comporte como real proprietário de baldio, essa aquisição de propriedade não opera nos modos gerais, desde logo pela nulidade da aquisição de posse. Tal facto, resultante do nº1 do artigo 4 da Lei n.º 68/93, de 04 de Setembro, compreende-se pela vontade do legislador em, por um lado, acautelar os interesses das populações, maioritariamente do Interior Norte e Centro, devido à importância que os Baldios ainda nos dias de hoje representam para a sobrevivência destas, e por outro, pela figura suis generis que os Baldios são, quer pela sua titularidade (“ser de todos sem ser de ninguém”), quer pela sua posição central e isolada no prisma do Público e Privado.
Face ao exposto, duvidas não se suscitam atualmente quanto à nulidade do apossamento e/ou aquisição do Direito de Propriedade de Baldio. É, no entanto, possível reconhecer a aquisição de um baldio por usucapião deste que o Autor faça prova cabal, para além dos demais requisitos previstos no Código Civil para o efeito, de que na data de entrada em vigor do indicado Decreto-Lei n.º 39/76, de 19/01 (24/01/76) já havia decorrido o tempo necessário à consolidação desta forma de aquisição da propriedade.
Foto por Federico Respini em Unsplash
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