Estudei este assunto em 2012 quando um cliente proprietário de um restaurante se confrontou com a publicação num blog da especialidade de várias mensagens passíveis de integrarem o tipo de crime difamação por parte de um anónimo. Com a intenção de avaliar da justeza da pretensão e também da possibilidade de sucesso quanto à identificação do anónimo através do acesso aos dados de tráfego – vulgo obtenção do endereço de IP – por parte do fornecedor de serviços de Internet (vulgo ISP) cheguei à jurisprudência dominante de que tal operação se encontra vedada dado que tal ilícito não consta, nem do catálogo previsto no art.º 187.º do Código de Processo Penal (V. Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 13/11/12).
Ali se defendia que “colidindo a interceção de comunicações com a inviolabilidade dos meios de comunicação privada consagrada no art. 34°, n.°1, da Constituição da República, só sendo a mesma permitida, nos termos do n.°4 da citada norma constitucional, nos casos expressamente previstos na lei de processo criminal, e não constando o crime de difamação do elenco dos crimes que admitem a recolha de prova através da interceção de comunicações, estatuído no n.°1 do art.º 187° do CPP, não seria admissível, através de uma interpretação extensiva, alargar-se tal elenco”, por forma a incluir-se o crime de difamação e em consequência obter os dados de tráfego.
Ao tempo esta jurisprudência foi muito criticada e recordo-me foi geradora de impunidade sobretudo porque no artigo 187º do CPP se mostra previsto, entre outros, o crime de injúria… Dois anos volvido muita coisa mudou na tecnologia e hoje mais do que nunca o assunto tem nova pertinência uma vez que a maioria destas publicações é efetuada por dispositivos móveis, cuja identificação pode ser feita não só através do endereço de IP, mas também da geolocalização (vulgo o GPS dos nossos smartphones). São motivos mais do que suficientes para revisitarmos o tema e verificar o que mudou na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Como sabemos o crime de difamação encontra-se previsto e punível no nosso ordenamento jurídico, nomeadamente no Código Penal Português.
Artigo 180.º do Código Penal (Difamação)“1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
- Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
- A boa-fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.”
Assim, “a difamação pode definir-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerram em si uma reprovação ético-social. II – A difamação, segundo a lei, compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém. II – Por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. IV – Por consideração deverá entender-se o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública.” – in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/02/1996.
“O valor da honra, enquanto dignitas humana, «é mais importante que qualquer outro (valor do direito à projecção moral, ou seja, o direito à honra em sentido amplo) e transige menos facilmente com os demais em sede de ponderação de interesses. A conduta antijurídica que lese o bom nome da pessoa através da divulgação pela imprensa há-de ser apta a abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida, não só no seu meio profissional, mas entre os cidadãos em geral.” (Cfr. Acórdão do Supremo do Tribunal de Justiça de 09-09-2010)
A materialidade da conduta traduz-se na afirmação ou propalação de factos inverídicos e sem razão para fundamentadamente serem tidos por verdadeiros e, que sejam susceptíveis de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos à entidade que figura como sujeito passivo.E pode ser dirigida tanto a pessoa singulares como coletivas. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/1960 – “As pessoas coletivas podem ser sujeito passivo nos crimes de difamação e de injúria.”)
Artigo 187.º do Código Penal (Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva)“1. Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”
Importa aqui distinguir entre honra subjetiva e honra objetiva, ou seja, a primeira diz respeito ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si, sendo que, esta representação pode referir-se às manifestações externas da vida de uma pessoa, aos seus hábitos, à sua posição na vida social, quer às suas qualidades espirituais ou físicas, sendo que, a segunda concerne à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, isto é, a consideração, o bom nome e reputação que uma pessoa goza no contexto social envolvente.
Mas sabemos também que a defesa destes valores esbarra muitas vezes com liberdades que damos como adquiridas e que a Constituição protege. O direito à informação e à manifestação livre da opinião ainda que abrasiva no seu conteúdo.
“O direito de informação é um direito constitucional de todos os cidadãos (embora limitado, pelos princípios gerais de direito criminal) A liberdade de reprodução, como liberdade de divulgação, é um direito atribuído e garantido por lei ao jornalista. A ilicitude da reprodução mediática fica afastada quando a reprodução caiba no âmbito do direito de divulgação jornalística e quando a mediatização implementada pelo jornalista respeite os respetivos e específicos deveres profissionais. Quando a mediatização implementada pelo jornalista exceda a crítica lícita ou a prossecução de interesses legítimos, atingindo o visado com a divulgação de determinado escrito, diretamente na sua personalidade, viola o direito do ofendido na sua honra e bom nome, ofendendo, de forma ilegítima a amplitude da sua integridade moral. Tal ofensa integra ilicitude criminal: o crime de difamação tipificado no artigo 180º do Código Penal” – acórdão do tribunal da relação de Évora de 14/06/2005.
A publicação de artigo sobre o restaurante no blog (meio de comunicação social), com uma nota crítica objetiva ainda que negativa não fere assim qualquer dos princípios enunciados. Contudo, se o artigo foi alvo de vários comentários, nos quais foram feitos diversos juízos de valor suscetíveis de colocar em crise a honra do estabelecimento entra em ação a proteção jurídico penal contra a difamação. O problema que se coloca amiúde é que os comentários são feitos anonimamente e o provedor de serviços e o autor da página resistem a indicar o endereço de IP por razões de proteção das comunicações e da própria reserva da vida privada.
No caso do Acórdão supra citada o Ministério Público reclamou por parte do provedor de serviços de Internet a indicação daqueles elementos e ante a recusa desta procurou obtê-los coercivamente. Sem sucesso como lemos do sumário do Acórdão: “Estando em causa investigação por crime de difamação através da internet, não é admissível o acesso a dados de tráfego, por via de autorização judicial, dado que tal ilícito não consta, nem do catálogo previsto no art. 187.º do CPP, nem da definição de crime grave do art. 2.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 32/2008, de 17.07″.
No plano jurídico a questão é esta: pode ou não alargar-se o âmbito das permissões do artigo 187º quanto a prova? É ou não permitida a interpretação extensiva ou a aplicação analógica? A jurisprudência tradicional inclina-se para a resposta negativa. A interpretação extensiva “pode ser amplamente utilizada no Direito Processual Penal, exceto quanto às normas restritivas de direitos subjetivos, ou que tenham natureza excecional. E parece ser este o caso em que se coloca em causa o direito à inviolabilidade das comunicações.
Na primavera de 2013 novo Acórdão sobre matéria conexa – a geolocalização – e nova oportunidade para rever a matéria. Estava em causa a autorização de colação de localizadores GPS em viaturas que presumivelmente seriam utilizadas para a prática de crimes. Agora também a Relação do Porto veio considerar que encontrando-se excluída do catálogo do artigo 187º do CPP a localização GPS também não constitui meio de prova sem prévia autorização judicial (Ac. Relação do Porto de 21-03-2013). Aplicando a questão à difamação não será possível igualmente identificar o autor das mensagem difamantes porque não é possível previamente obter a dita autorização.
Em conclusão, ao contrário da generalidade dos países da União Europeia continua a ser difícil (senão impossível) perseguir o discurso difamatório na Internet perpetrado sob a capa do anonimato. Fica à atenção do legislador!.
Foto por Peter Scherbatykh em Unsplash
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