O assunto é atual e polémico. É também transversal à administração pública pelo que a análise que fazemos orienda de um parecer jurídico dado relativo a um sector especídico pode caracer de complemento. Ainda assim pelo elevado interesse público e controvérsio deixo aqui aquilo que tenho pensado e estudado nos últimos meses.
I – A mudança de nível e a promoção de categoria, face ao descongelamento das carreiras
A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP) entrou em vigor em 01/08/2014.
Conforme os artigos 44.º e 42.º, n.º 1, alíneas e) e c) da LGTFP, foram revogadas a Lei n.º 59/2008, de 11/09 (doravante designada de RCTFP) e a Lei n.º 12-A/2008, de 27/02 (doravante designada de RVCFP).
Sem embargo, o RVCFP, no seu artigo 117.º, n.º 4, clarifica a terminologia doravante consagrada, fazendo-a corresponder aos termos até aí considerados, do seguinte modo:
- As menções legais relativas a “escalão” passam a ser entendidas como sendo “posicionamento remuneratório”;
- As menções relativas a “mudança de escalão” passam a ser entendidas como significando “alteração do posicionamento remuneratório”.
De acordo com o previsto no artigo 41.º, n.º 1, al. a) da LGTFP, mantêm-se as carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, designadamente as de regime especial, como é o caso da carreira de Informática (artigo 2.º do EPI).
Estipula o artigo 41.º, n.º 1, al. b) da LGTFP que estas carreiras passam a reger-se pelas disposições legais que lhe eram aplicáveis em 31/12/2008, conjugadas com as alterações introduzidas pelos artigos 156.º a 158.º, 166.º e 167.º da LGTFP, e ainda tendo em conta o estipulado no artigo 113.º do RVCFP.
Acontece que os artigos 156.º a 158.º da LGTFP se reportam ao modo como se efetua a alteração do posicionamento remuneratório, expressão atualmente utilizada para designar a anterior “alteração de escalão remuneratório”, pelo que, no limite, estes artigos apenas seriam aplicáveis à progressão dentro do mesmo nível, derrogando-se assim o artigo 4.º do EPI.
Nestes termos, é pacífico que os artigos 5.º e 6.º do EPI não são afastados pela legislação em vigor no presente (LGTFP), sendo estes que estabelecem as regras para a mudança de nível e a promoção de categoria.
Neste sentido se pronunciou já o Conselho Consultivo da PGR, no seu Parecer n.º 2/2013, de 23/01/2013 (Relator: Manuel Matos, disponível em www: http://www.ministeriopublico.pt/iframe/pareceres-do-conselho-consultivo-da-pgr).
II- A progressão no nível, face ao descongelamento das carreiras
Como é sabido, o Orçamento do Estado para 2011 (OE-2011) proibiu quaisquer valorizações remuneratórias na administração pública, nomeadamente progressões e promoções na carreira, situação que foi mantida nos orçamentos posteriores, mantendo-se o congelamento até 2017.
Apesar de proibir as progressões, os sucessivos orçamentos, a partir do OE-2011, mantiveram os efeitos associados à avaliação de desempenho. Ou seja, os pontos que os trabalhadores obtiveram na avaliação de desempenho são tidos em consideração, embora não tenha havido a progressão correspondente. O mesmo aconteceu com os vários tipos de menções a ter em conta na mudança de posição remuneratória e/ou na atribuição de prémios de desempenho
Diga-se ainda, em abono da verdade, que houve neste período algumas exceções ao congelamento decretado pelos sucessivos Governos, em carreiras como as dos militares ou nas forças de segurança, onde foram permitidas algumas promoções.
Por outro lado, importa ainda situar que, enquanto nas carreiras gerais (técnicos superiores, assistentes técnicos e operacionais) a progressão do trabalhador é automaticamente operada quando acumula 10 pontos no mesmo posicionamento, obtidos tendo por base a avaliação de desempenho nesse período (artigo 156.º, n.º 7 da LGTFP), as carreiras especiais têm as suas regras próprias.
Dentro destas últimas, há carreiras como a dos professores, magistrados, militares ou polícias, cuja progressão depende sobretudo do tempo de serviço.
Já quanto a outra carreiras, e de acordo com o artigo 6.º do EPI, a progressão no nível, isto é, a alteração de posição remuneratória (escalão) dentro de cada nível, opera-se automaticamente, depois de 2 anos na posição anterior com a classificação de “muito bom”, ou de 3 anos com a classificação de, no mínimo, “bom”.
Ora, pretender aplicar a estes trabalhadores as regras aplicadas às carreiras gerais viola a nosso ver os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proteção da confiança, ambos ínsitos no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa – CRP).
De fato, e tendo em conta aquelas garantias, foram assumidos encargos com horizonte temporal de longo prazo, no pressuposto de que elas se traduzem num direito adquirido, por força dos princípios referidos.
Na sequência do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro 2011/2014 (PAEF), estes trabalhadores viram a sua legítima expectativa de progressão na carreira congelada, tendo ainda sido sujeitos a reduções das suas remunerações, que se prolongaram por vários anos, sendo que só agora estão a ser criadas as condições de descongelamento que lhes permitam tal progressão.
É certo que neste longo período que dura já desde 2011 e até há bem pouco tempo, esta realidade foi acompanhando os sucessivos e pesados sacrifícios pedidos a todos os portugueses, por força das medidas de contenção orçamental, pelo que é compreensível que assim tenha sido, por tal se afigurar da mais elementar equidade.
No entanto, na conjuntura atual de desagravamento da situação económica e financeira do país e o fim da austeridade, não se encontra justificação para a imposição à carreira de informática do regime instituído em 2008 pelo RVCFP, e confirmado em 2014 pela atual LGTFP, relativamente às regras para a progressão de nível.
Até porque, na atual conjuntura, o grau de sacrifício que se pretende impor não tem justificação, à luz de um critério de necessidade, assumindo antes um nível desproporcionado, e por isso violando o princípio da proporcionalidade.
Não se negando a legitimidade que assiste ao legislador de alterar de forma drástica as regras de progressão na carreira, com o consequente impacto negativo que tal decisão impõe aos trabalhadores (o que fez com os já citados diplomas – RVCFP e LGTFP), também é verdade que a sua aplicação com carácter retroativo já é questionável, tendo em conta as exigências impostas às leis restritivas, estabelecidas no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República (CRP).
Concordando connosco, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem que o direito a não ser prejudicado pelo exercício de funções públicas “implica a garantia de dimensões prestacionais e estatutárias e, consequentemente, proibição da lesão das posições juridicamente alicerçadas (benefícios sociais, segurança social, progressão na carreira, antiguidade” (in. Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007, p.677).
Com efeito, a aplicação retroativa da LGTFP à carreira de informática destrói a superior ideia de que o serviço público é uma via paralela e meritória, que afasta os que o prestam do exercício e natural progressão nas suas carreiras profissionais no privado, consequência essa que a Constituição não permite, pois tal medida revela-se totalmente desproporcionada, atentando contra o princípio da proteção da confiança em que deve assentar a relação de todos os cidadãos com o Estado e com as instituições que o integram, conjugado com o princípio da proporcionalidade.
O princípio da proteção da confiança, como vem sendo sublinhado pelo Tribunal Constitucional (TC) em inúmeros arrestos, postula “uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e segurança jurídica nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos da comunidade na tutela jurídica” (in Acórdão TC n.º 232/88).
O que se pretende, com a aplicação da LGTFP à carreira de informática, contende também, pelo que ficou exposto, com os princípios da segurança jurídica e da confiança, tal como fluem do artigo 2.º da CRP e tal como vêm sendo aplicados pela jurisprudência constitucional.
Como assinalou o recente Acórdão TC n.º 413/2014, que se pronunciou precisamente sobre as já referidas reduções das remunerações no sector público, o TC tem uma jurisprudência constante e reiterada neste sentido, citando em especial, a formulação do Acórdão TC n.º 128/2009, que se pronunciou nos seguintes termos:
“A aplicação do princípio da confiança deve partir de uma definição rigorosa dos requisitos cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, para ser digna de tutela: em primeiro lugar, as expectativas de estabilidade do regime jurídico em causa devem ter sido induzidas ou alimentadas por comportamentos dos poderes públicos; elas devem, igualmente, ser legítimas, ou seja, fundadas em boas razões, a avaliar no quadro axiológico jurídico-constitucional; por fim, o cidadão deve ter orientado a sua vida e feito opções, precisamente, com base em expectativas de manutenção do quadro jurídico.
Dados por verificados esses requisitos, há que proceder a um balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração. Com efeito, para que a situação de confiança seja constitucionalmente protegida, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa”.
Ainda a propósito do princípio da proteção da confiança, o Acórdão TC n.º 575/2014 refere que “as expectativas dos particulares na continuidade, e na não disrupção, da ordem jurídica, não são realidades aferíveis ou avaliáveis no plano empírico dos factos. A sua densidade não advém de uma qualquer pré-disposição, anímica ou psicológica, para antecipar mentalmente a iminência ou o risco das alterações legislativas; a sua densidade advém do tipo de direitos de que são titulares as pessoas afetadas e o modo pelo qual a Constituição os valora“.
A posição que se tem vindo a defender alicerça-se ainda na constatação de que, por via do congelamento operado poucos anos depois de instituído o novo regime (RVCFP), este nunca chegou a ser aplicado à carreira de Informática.
E nem se diga que tal foi feito em 2011, pois nessa altura as progressões verificadas foram-no por via da aplicação do EPI.
Por fim, note-se que a aplicação em 2018, do regime instituído a partir de 2012, inviabiliza que trabalhadores com cerca de 30 anos de serviço possam chegar ao fim da sua vida profissional ativa em níveis remuneratórios compensatórios da sua opção de enveredar por esta profissão em funções públicas.
Ora, nos termos dos artigos n.º 3 e 82.º, n.º 4 da LGTFP, constitui uma norma base definidora do regime do vínculo de emprego público que “todos os trabalhadores têm direito ao pleno desenvolvimento da respetiva carreira profissional, que pode ser feito por alteração de posicionamento remuneratório ou por promoção”.
Foto de Dominic Sansotta em Unsplash
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