É possível que alguns dos leitores deste texto tenham já sido vítimas de stalking. Um estudo de 2011 da Universidade do Minho refere que 19,5% dos portugueses já foi vítima do fenómeno, pelo menos uma vez na vida.
Chegar a uma definição unânime de stalking tem-se revelado tarefa difícil- quantos actos são necessários para que se considere haver uma conduta de perseguição? Onde acaba a legítima demonstração de afectos e começa o stalking? Em nossa óptica, o stalking corresponde a uma forma de violência interpessoal que consiste numa campanha de comportamentos reiterados e obsessivos, de assédio e perseguição, indesejados pelo alvo e que se prolongam no tempo, sendo susceptíveis de criar na vítima um clima de medo, temor e desconforto, podendo-lhe provocar graves lesões físicas e psicológicas. São vários os comportamentos que se podem integrar no conceito, podendo compreender acções rotineiras e, à primeira vista, inofensivas (enviar mensagens de forma insistente) ou acções claramente intimidatórias (perseguir o alvo, ameaça-lo, agredi-lo física e/ou sexualmente, etc.).
Ao contrário do que poderíamos ser levados a pensar este não é um fenómeno recente, ao contrário da sua criminalização. Já em algumas tragédias gregas da antiguidade podemos encontrar relatos de comportamentos típicos de perseguição ou condutas que, pelos actuais parâmetros, se poderiam enquadrar no conceito. No entanto, durante séculos, estas práticas foram ignoradas e até aceites, vistas como meras demonstrações de romantismo ou cortejamento. Só a partir dos anos 80 é que a sociedade começou a despertar para o problema. Um dos mais famosos casos de stalking culminaria na tentativa de assassinato do Presidente Ronald Reagan. A história começa no ano de 1976, data da estreia do famoso filme de Martin Scorcese, Taxi Driver. John Hinckley Jr. começa a desenvolver uma obsessão por uma jovem actriz que entrava no filme, Jodie Foster. Quando ela ingressa na Faculdade de Yale, John muda-se para New Haven, perto da universidade, para poder persegui-la. Começa a escrever-lhe poemas e a ligar insistentemente. Como Foster não lhe dava atenção formula um plano que a fizesse notar em si. Inspirado no filme de Scorcese, em que a personagem de Robert deNiro engendra um plano para assassinar um candidato presidencial, começou a perseguir o Presidente em funções, Jimmy Carter, mas sem sucesso acabando detido por posse de arma ilegal. John Hinckley não desistiu e, em 1981, virou as atenções para o recém-eleito Ronald Reagan. Assim, no dia 30 de Março de 1981, deslocou-se ao Hotel Hilton em Washington D.C, onde o Presidente se encontrava, e disparou 6 vezes na sua direcção. Reagan sobreviveu e Hinckley foi detido. Em julgamento foi considerado não culpado por sofrer de problemas mentais, mas mesmo assim acaba por ser internado no Hospital St. Elizabeth em Washington. No dia 5 de Agosto deste ano John Hinckley Jr. foi libertado, 35 anos depois do crime.
Mais tarde outro caso abalou o mundo. Entre finais de 1989 e início de 1990, 6 mulheres são assassinadas em Orange County, Califórnia, na sequência de actos de stalking que se prologavam há meses. A grande mediatização dos casos gerou um debate público e político que culminaria na apresentação da primeira lei anti-stalking, em 1990, no estado da Califórnia. Em 1993 já todos os Estados americanos tinham legislação do género. Este movimento criminalizador estendeu-se depois a vários países como a Austrália, o Canadá ou a Alemanha. Quanto ao nosso, só em 2007 foi publicado o primeiro artigo científico sobre o tema e só em 2011 surgiu o primeiro estudo sobre o fenómeno. O assunto foi ganhando notoriedade no meio académico, mas também na sociedade em geral através de filmes, séries e pela divulgação de várias notícias sobre casos de perseguição obsessiva nos media. E, finalmente, no ano de 2015 foi aprovada a Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que tipificou o novo crime de “perseguição” no artigo 154º-A CP.
Como referimos anteriormente, são vários os comportamentos que se podem enquadrar no conceito de stalking. Entre os mais comuns temos a tentativa de entrar em contracto com a vítima (através de mensagens, chamadas, envio de emails), aparecer em locais habitualmente frequentados por ela e persegui-la para onde quer que ela se desloque, ameaçar a vítima ou pessoas próximas dela (familiares, amigos, etc.), agredi-la física e/ou sexualmente, etc. Todos estes actos, praticados de forma repetida, persistente e imprevisível, levam a que a vítima se sinta totalmente desamparada e impotente perante o que lhe está a acontecer. Esta intrusão provoca efeitos nefastos na sua saúde física e mental, afecta o seu estilo de vida e o seu bem-estar emocional. Muitas vezes ela vê-se obrigada a alterar as suas rotinas diárias de forma a escapar ao stalker, isolando-se de tudo e todos, ficando incapaz de controlar o rumo da sua própria vida.
Em primeiro lugar, devemos referir que este tipo de crime pretende defender direitos fundamentais das vítimas como o direito à integridade física e psicológica, direito à saúde, direito à reserva da vida privada e familiar e a liberdade de autodeterminação.
Verificamos também que a lei não exige que os comportamentos levados a cabo pelo perpetrador provoquem, efectivamente, medo ou inquietação na vítima ou lhe prejudiquem a liberdade de determinação, bastando que essas condutas sejam adequadas a provocar tais efeitos no “homem médio”. Não é assim necessário demonstrar que a conduta levada a cabo pelo agente provocou, em concreto, qualquer desses efeitos, mas sim que tais acções são passíveis de os provocar – ou seja, que a conduta perpetrada era susceptível de provocar, no homem médio, medo ou inquietação ou que era passível de afectar a sua liberdade de autodeterminação.
Outra das opções do legislador português foi a definição do delito de forma ampla (ao contrário do que acontece noutros países em que o mesmo é definido através da estipulação das condutas que se consideram ser de perseguição), usando a expressão “por qualquer meio”, podendo o crime ser cometido através de uma multiplicidade de comportamentos. Assim, qualquer que seja o meio utilizado, se a actuação do agente se enquadrar nos conceitos de perseguição ou assédio reiterado e for adequada a provocar medo, inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima, estaremos perante uma conduta de stalking. Exige-se também que tais condutas sejam praticadas de forma reiterada. A reiteração, que se traduz na adopção da conduta típica durante um certo período de tempo, é um elemento constitutivo do tipo objectivo da perseguição e é o que o distingue de outros crimes semelhantes. Refira-se ainda que o legislador previu que as condutas que afectem indirectamente a vítima (quando o agente, de forma a afectar a vítima principal – aquela que de facto pretende perseguir – começa a praticar acções contra pessoas próximas dela) são também puníveis.
Quanto às sanções aplicáveis, elas estão previstas na parte final do artigo 154º-A/1 (prisão até 3 anos ou pena de multa – cujo limite máximo, por força da aplicação do regime regra do artigo 47º/1, pode ir até aos 360 dias de multa segundo o professor Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal: Parte Especial). Estas penas só serão aplicadas se “pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. Isto significa que, estando em concurso dois tipos de crime (por exemplo stalking e homicídio simples), se a pena aplicável a um dos tipos de crime for superior (neste caso seria a de homicídio simples) é essa pena que se aplicará e não a estatuída no artigo 154º-A.
Nos números 3 e 4 do presente artigo estão ainda estipuladas penas acessórias que poderão ser aplicadas ao agente. São elas a proibição de contacto com a vítima (entre 6 meses e 3 anos) que pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e que pode ser fiscalizado através de meios técnicos de controlo à distância, como a pulseira electrónica (meios esses que se encontram previstos no artigo 35º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro). Prevê-se também a possibilidade de aplicação da obrigação de frequência de programas de prevenção de condutas típicas de perseguição. O crime em questão é semi-público, estando o procedimento criminal dependente de queixa (154º-A/5).
Uma nota final para a possibilidade da pena prevista no artigo 154º-A/1 ser agravada. Quando os actos de stalking forem praticados nas circunstâncias previstas no artigo 155ºCP a moldura prevista no número 1 do artigo anterior é agravada para 1 a 5 anos de prisão. Isto acontece se os factos forem realizados por exemplo: contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez (155º/1,b)) ou, se devido a essas condutas, a vítima sobre a qual as mesmas recaíram se suicidar ou tentar suicidar (155º/2). Segundo a grande maioria da jurisprudência, nos casos previstos no artigo 155º, o crime de stalking passa a ser público não sendo necessário a apresentação de queixa para que o processo-crime tenha início (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 284/10.6/GBPRD.P1 de 02/05/2012 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 187/11.7GBLSA.C1 de 10/07/2013).
Resta-nos concluir que a recente criminalização do stalking foi um passo muito importante na defesa dos direitos fundamentais das vítimas, suprindo uma lacuna que existia no nosso ordenamento jurídico e que deixava sem punição comportamentos violadores de bens jurídicos fundamentais, como a liberdade de determinação, a reserva da intimidade da vida privada e a saúde física e psicológica das vítimas.
Foto por Ludovic Toinel em Unsplash