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Carlos Canaes

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Direito Penal

Relação de concurso entre crimes de recetação e burla.

27 de Dezembro, 2019 by Carlos Canaes Deixe um comentário

Como sabemos, e resulta do artigo 231º do Código Penal, para que exista um crime de recetação não basta o conhecimento ou a suspeita por parte do agente que a coisa tem origem ilícita ou mesmo criminosa, sendo necessário que o agente tenha conhecimento ou suspeite, que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património. Neste sentido se pronunciam Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal, Pedro Caeiro no Comentário Conimbricense, o Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/07/2012, e 16/02/2017.

No essencial, até porque se trata de matéria crescentemente pacífica, os argumentos aí em confronto traduzem-se no seguinte. O crime de recetação é um tipo de ilícito exclusivamente culposo, o que afasta a sua punibilidade a título de negligência ou mesmo de dolo eventual. A questão é esta: a construção das sentenças de primeira instância que deram origem aos arestos supracitados da Relação de Lisboa relacionados com negociantes profissionais ou ocasionais de veículos automóveis quanto ao crime de burla baseiam-se naquilo que Paulo Pinto de Albuquerque chama de “ligação da coisa suspeita ao dever de informação sobre a sua proveniência”. O raciocino por detrás das sentenças revertidas é o seguinte: será que atendendo ao valor de venda dos veículos abaixo dos valores de marcado não poderia e deveria o arguidos ali sujeitos a julgamento concluir pela proveniência ilícita do veículo? Ora, este raciocino que é legítimo para o crime de burla não vale para a recetação que não admite o tipo negligente.

Mas se me permitem o arrojo há outra razão que igualmente impõe uma reflexão quanto ao crime de recetação, e que salvo o devido respeito, não temos visto suficientemente glosado na jurisprudência. Para que a recetação possa ser punida autonomamente em relação aos crimes de burla tem de existir a intenção conseguir um proveito de ordem patrimonial diferente do ilícito originário. Ora, no caso das sentenças revertidas que servem de base a esta análise mesmo admitindo que os veículos possam ter sido detidos, conservados ou transmitidos por algum dos arguidos não se antevê com facilidade que possa existir no reino das possibilidades qualquer intenção de lucro autónomo diferente da própria burla. Dito de outra forma: alterar as matriculas ou chassis de um veículo com o objetivo de que este passa ser vendido a pessoa diferente do proprietário e obter daí um proveito é algo que se entende. Diferente, é juntarmos uma segunda intenção criminosa no momento da detenção.

O problema é, aliás, a nosso ver, o mesmo relativamente à relação de concurso entre os crimes de falsificação e burla (ainda que sem o mesmo grau de consenso na jurisprudência). Não existem duas intenções criminosas dignas de validação autónoma pelo direito mas apenas uma.

Foto por Hannes Egler em Unsplash

Arquivado em:Direito Penal

MDE: Princípio da Especialidade

26 de Dezembro, 2019 by Ana Rita Mendes Deixe um comentário

A lei n.º 65/2003  de 23 de Agosto veio aprovar o regime jurídico do MDE, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, aplicando-se aos pedidos recebidos depois desta data com origem em Estados-membros que tenham optado pela aplicação imediata daquela (seu art.40º). 

Na definição legal dada pelo artigo 1º da Lei n.º 65/2003, de 23/08 o mandato de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade, sendo executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma Lei e referida Decisão-Quadro. 

Esta última não define o princípio do reconhecimento mútuo, tal como aquela Lei não o faz, mas, em geral, não sofre dúvida que ele assenta na confiança mútua que pressupõe compreensão, impondo às autoridades de um Estado que aceitem reconhecer os mesmos efeitos às decisões estrangeiras que às decisões nacionais, apesar das diferenças que oponham as ordens jurídicas em causa. (Cfr. Do Mandado de Detenção Europeu, de Manuel Guedes Valente, Almedina, 2006, a pág.83) 

Nas palavras de Daniel Flores, em “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 13, nº.1, a pág.33 que “desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e direto sobre o conjunto do território da União, significando que as autoridades competentes do Estado-membro do território no qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado.” 

Tal princípio de confiança subjacente ao reconhecimento mútuo, ligado ainda a escopos de simplicidade e de celeridade, só através da ausência de exigência absoluta da dupla incriminação (no Estado-membro de emissão e no Estado-membro de execução) poderia ser concretizado, motivo por que se elencou, no art.2º, nº.2, da Lei nº.65/2003, identicamente ao que consta da Decisão-Quadro, um catálogo de infrações relativamente às quais se aboliu o controlo da dupla incriminação desde que puníveis com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos. 

No respeitante a infrações aí não previstas, o legislador português parece ter, contudo, optado por sujeitá-las ao princípio da dupla incriminação – v.nº.3 do art.2º da Lei nº.65/2003. 

Na esteira da Decisão-Quadro enveredou-se por uma solução de compromisso entre a abolição geral da dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, mediante a previsão de causas facultativas de recusa de execução do MDE, bem como de determinadas garantias que, em casos especiais, devem ser fornecidas pelo Estado-membro de emissão, como decorre do disposto nos arts.12º e 13º da Lei nº.65/2003. 

Optou-se, pois, por uma abolição relativa da dupla incriminação, que não afetasse essa reserva de soberania e que correspondesse aos desideratos de preocupação comum da União.  

Isto significa que a pessoa entregue em cumprimento de um MDE não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu, nos termos do art.7º da Lei nº.65/2003, o que se consubstancia no denominado princípio da especialidade, embora essa pessoa possa renunciar a essa regra e nos moldes que são definidos no nº.3 do mesmo preceito legal. 

Foto por Element5 Digital em Unsplash

Arquivado em:Direito Europeu, Direito Penal

A valoração dos antecedentes criminais na determinação da medida da pena

17 de Abril, 2017 by Carlos Canaes Deixe um comentário

No processo de determinação da medida concreta da pena nos termos do artigo 71º do Código Penal mostram-se critérios informadores daquele processo “a culpa do agente” e “as exigências de prevenção”.

Como exemplarmente escreve Figueiredo Dias “as circunstâncias devem ser aferidas ‘em função da culpa do agente de das exigências de prevenção’. Cada circunstância tem uma conexão de sentido com a culpa do agente ou com as necessidades de socialização ou inocuização do agente. No primeiro caso, a circunstância releva para a determinação da pena em virtude de ela agravar ou atenuar a culpa. No segundo caso, a circunstância releva para a determinação da pena em virtude de ela agravar ou atenuar as necessidades preventivas de sociabilização ou inocuização do agente” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993:248).

Nesta tarefa – com salienta Anabela Miranda Rodrigues – “é o juiz auxiliado pelo artigo 72º Nº2 do Código Penal, o qual depois de estabelecer que aquele atenderá, na determinação da pena, a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, enumera de forma exemplificativa, alguns dos fatores de medida da penade caracter geral.

Aí com relevância concreta no caso subjudice encontra-se o facto de “ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta”.

Por outro lado, como sabemos resultar do princípio in dubio pro reu e bem salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no “concurso de circunstâncias modificativas agravantes e atenuantes, deve funcionar a circunstância mais grave e, em relação à moldura apurada, sucessivamente as circunstâncias modificativas atenuantes” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2ª Edição. P. 272).

Isto significa que num caso concreto, e em benefício do arguido na determinação da medida concreta da pena, e depois na decisão de suspender a pena efetiva de prisão, devem operar em cumulação todos os factos que o beneficiam (por exemplo terem decorrido um número significativo de anos sobre a prática dos factos, a reintegração profissional, a inexistência da prática de crimes por um período largo de tempo); sendo que ao invés quanto aos factos que não abonam a seu favor (designadamente os antecedentes criminais e as diversas penas privativas de liberdade que sofreu em virtude de práticas desconformes ao direito) só podem operar uma vez.

Fala a este propósito a doutrina e jurisprudência em princípio da proibição da dupla valoração para significar que circunstâncias já valoradas no apuramento dos pressupostos da responsabilidade criminal ou das medidas parcelares, não podem novamente ser considerada para efeitos de determinação da medida concreta da pena ou mesmo das opções quanto a não suspensão da pena única (V. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2ª Edição. P. 272. Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/10/2016 in www.dgsi.pt ).

Neste sentido, e quanto à decisão de suspensão, escreve Anabela Rodrigues, “a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena – o da determinação da medida concreta da pena de prisão – não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção (Anabela Rodrigues, Critério de Escolha das Penas de Substituição no Código Penal Português, 1988, pp. 24 e segs.).

Estas orientações serviram de base a decisões recentes do Tribunais Superiores, de entre as quais glosamos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/09/2013 (http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/cbbe5838c9aeb09680257bfe00471f9c?OpenDocument)

“Na operação de escolha da pena, a aplicação da pena de substituição impõe-se quando se verificam os seus pressupostos materiais, o que exige que se ponderem as razões de prevenção especial (carência de socialização do arguido) e que simultaneamente fique salvaguardado o “limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica”. Ou seja, quando se está na fase da escolha da pena (momento posterior ao da determinação da medida concreta da pena), o tribunal pondera as exigências de prevenção especial que se fazem sentir no caso concreto e, caso estas sejam satisfeitas através da aplicação de uma pena de substituição, não pode deixar de aplicar a pena de substituição se esta igualmente realizar as exigências mínimas (que são irrenunciáveis) de prevenção geral positiva”.

Foto por niu niu em Unsplash

Arquivado em:Direito Penal

Admissibilidade e valoração de vídeo de crime

8 de Setembro, 2016 by Carlos Canaes Deixe um comentário

(1). Existem fundadas dúvidas na jurisprudência, doutrina e prática judiciária quanto à admissibilidade e valoração da junção ao processo penal em curso de um video com gravação dos atos objeto do processo por parte dos arguidos. Mas é também uma situação cada vez mais comum processualmente num tempo em que com um simples smartphone se consegue reproduzir com muito qualidade de imagem e som o momento em que os factos em discussão no processo ocorreram. A situação é transversal a todas as áreas de direito mas ganha particular acuidade em processo penal (veja-se por exemplo as situações em que terceiros filmam uma intervenção policial num bairro social ou à porta ou até o caso recente reportado na comunicação social em que um casal pratica atos sexuais durante o dia num parque  na presença de um menor) e sobretudo quando é o próprio arguido a juntar ao processo o video gravado para sua defesa.

A questão controvertida centra-se na eventual qualificação da gravação em vídeo como constituindo prova proibida, uma vez que poderá ter sido obtida através dos métodos previstos no art. 32º, nº 8 da CRP (“abusiva intromissão na vida privada”).

Vejamos com mais detalhe,

(2) Costa Andrade, relativamente ao art. 199º do Código Penal, referente às gravações e fotografias ilícitas, tem defendido que estes bens jurídicos são violados, quer a pessoa grave/filme/fotografe outrém sem o seu consentimento, ou as utilize, ainda que as tenha obtido lícitamente. Esta tese é ainda hoje maioritária e teve expressão no recente no chamado caso “Braga Parques”, através do qual o Tribunal da Relação atendeu, por inteiro, o parecer do Prof. Costa Andrade, em que este escreve que os fins não justificam os meios e que importa, proteger acima de tudo, os direitos à palavra e à imagem. Pronuncia-se o autor contra a chamada “privatização da investigação”.

Contudo, tem sido aceite por outra doutrina e jurisprudência que quando determinada prova é o único meio disponível em ordem à descoberta da verdade e de acordo com o princípio da proporcionalidade e o bem jurídico violado (pela obtenção da prova ilícita) no caso concreto se mostrar menos digno de proteção do que aquilo que se visa provar, estará aberta a porta à excecional admissão da prova ilícita.

Esta jurisprudência tem considerado que as gravações ou fotografias, mesmo sem o consentimento do visado, feitas em locais públicos ou de acesso ao público, não correspondem a qualquer método proibido de prova, quer por não violarem o núcleo duro da vida privada – e portanto, faz sentido a ideia de “proporcionalidade “ – quer por existir uma justa causa na sua obtenção, que é a de documentarem a prática de uma infracção criminal.

(3) Situação ainda mais complexa surgeno caso da junção do vídeo por parte do arguido para a sua defesa e admitido como meio de prova em termos de proporcionalidade vier a demonstrar ou incluir matéria incriminatória para o próprio arguido.

A nosso ver, o arguido ao juntar  ao processo vídeo que contenha matéria suscetível de o responsabilizar no plano jurídico penal esta a confessar os factos pelo que a gravação deve ser valorada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz.

Como sabemos, o direito à não auto-incriminação apenas respeita às perguntas sobre factos imputados ao arguido, cuja resposta possa, previsivelmente, resultar a sua responsabilização. Nesse caso, vale o direito ao silêncio. Já quando é o próprio arguido que vem ao processo por dever de colaboração juntar factos e elementos que o incriminam essa prova deve ser admitida e valorada. Sobretudo no caso em que os arguidos não se acometeram ao silencio como poderiam.

(4) Outra situação limite é a aceitação do vídeo como meio de prova por parte do Tribunal e a sua não apreciação e valoração no âmbito da sentença a proferir. A nosso ver, o vídeo após ter sido admito deve ser livremente valorado pelo juiz, mas como qualquer outro meio de prova deve ser valorado pelo que a inexistência de qualquer referência ao mesmo na sentença será susceptível de omissão de pronuncia e susceptível de recurso com esse fundamento.

Foto por Conner Baker em Unsplash

Arquivado em:Direito Penal

O crime de stalking à luz do nosso Código Penal

24 de Agosto, 2016 by Bruno Dias Deixe um comentário

É possível que alguns dos leitores deste texto tenham já sido vítimas de stalking. Um estudo de 2011 da Universidade do Minho refere que 19,5% dos portugueses já foi vítima do fenómeno, pelo menos uma vez na vida.
Chegar a uma definição unânime de stalking tem-se revelado tarefa difícil- quantos actos são necessários para que se considere haver uma conduta de perseguição? Onde acaba a legítima demonstração de afectos e começa o stalking? Em nossa óptica, o stalking corresponde a uma forma de violência interpessoal que consiste numa campanha de comportamentos reiterados e obsessivos, de assédio e perseguição, indesejados pelo alvo e que se prolongam no tempo, sendo susceptíveis de criar na vítima um clima de medo, temor e desconforto, podendo-lhe provocar graves lesões físicas e psicológicas. São vários os comportamentos que se podem integrar no conceito, podendo compreender acções rotineiras e, à primeira vista, inofensivas (enviar mensagens de forma insistente) ou acções claramente intimidatórias (perseguir o alvo, ameaça-lo, agredi-lo física e/ou sexualmente, etc.).

Ao contrário do que poderíamos ser levados a pensar este não é um fenómeno recente, ao contrário da sua criminalização. Já em algumas tragédias gregas da antiguidade podemos encontrar relatos de comportamentos típicos de perseguição ou condutas que, pelos actuais parâmetros, se poderiam enquadrar no conceito. No entanto, durante séculos, estas práticas foram ignoradas e até aceites, vistas como meras demonstrações de romantismo ou cortejamento. Só a partir dos anos 80 é que a sociedade começou a despertar para o problema. Um dos mais famosos casos de stalking culminaria na tentativa de assassinato do Presidente Ronald Reagan. A história começa no ano de 1976, data da estreia do famoso filme de Martin Scorcese, Taxi Driver. John Hinckley Jr. começa a desenvolver uma obsessão por uma jovem actriz que entrava no filme, Jodie Foster. Quando ela ingressa na Faculdade de Yale, John muda-se para New Haven, perto da universidade, para poder persegui-la. Começa a escrever-lhe poemas e a ligar insistentemente. Como Foster não lhe dava atenção formula um plano que a fizesse notar em si. Inspirado no filme de Scorcese, em que a personagem de Robert deNiro engendra um plano para assassinar um candidato presidencial, começou a perseguir o Presidente em funções, Jimmy Carter, mas sem sucesso acabando detido por posse de arma ilegal. John Hinckley não desistiu e, em 1981, virou as atenções para o recém-eleito Ronald Reagan. Assim, no dia 30 de Março de 1981, deslocou-se ao Hotel Hilton em Washington D.C, onde o Presidente se encontrava, e disparou 6 vezes na sua direcção. Reagan sobreviveu e Hinckley foi detido. Em julgamento foi considerado não culpado por sofrer de problemas mentais, mas mesmo assim acaba por ser internado no Hospital St. Elizabeth em Washington. No dia 5 de Agosto deste ano John Hinckley Jr. foi libertado, 35 anos depois do crime.

Mais tarde outro caso abalou o mundo. Entre finais de 1989 e início de 1990, 6 mulheres são assassinadas em Orange County, Califórnia, na sequência de actos de stalking que se prologavam há meses. A grande mediatização dos casos gerou um debate público e político que culminaria na apresentação da primeira lei anti-stalking, em 1990, no estado da Califórnia. Em 1993 já todos os Estados americanos tinham legislação do género. Este movimento criminalizador estendeu-se depois a vários países como a Austrália, o Canadá ou a Alemanha. Quanto ao nosso, só em 2007 foi publicado o primeiro artigo científico sobre o tema e só em 2011 surgiu o primeiro estudo sobre o fenómeno. O assunto foi ganhando notoriedade no meio académico, mas também na sociedade em geral através de filmes, séries e pela divulgação de várias notícias sobre casos de perseguição obsessiva nos media. E, finalmente, no ano de 2015 foi aprovada a Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que tipificou o novo crime de “perseguição” no artigo 154º-A CP.

Como referimos anteriormente, são vários os comportamentos que se podem enquadrar no conceito de stalking. Entre os mais comuns temos a tentativa de entrar em contracto com a vítima (através de mensagens, chamadas, envio de emails), aparecer em locais habitualmente frequentados por ela e persegui-la para onde quer que ela se desloque, ameaçar a vítima ou pessoas próximas dela (familiares, amigos, etc.), agredi-la física e/ou sexualmente, etc. Todos estes actos, praticados de forma repetida, persistente e imprevisível, levam a que a vítima se sinta totalmente desamparada e impotente perante o que lhe está a acontecer. Esta intrusão provoca efeitos nefastos na sua saúde física e mental, afecta o seu estilo de vida e o seu bem-estar emocional. Muitas vezes ela vê-se obrigada a alterar as suas rotinas diárias de forma a escapar ao stalker, isolando-se de tudo e todos, ficando incapaz de controlar o rumo da sua própria vida.

Em primeiro lugar, devemos referir que este tipo de crime pretende defender direitos fundamentais das vítimas como o direito à integridade física e psicológica, direito à saúde, direito à reserva da vida privada e familiar e a liberdade de autodeterminação.
Verificamos também que a lei não exige que os comportamentos levados a cabo pelo perpetrador provoquem, efectivamente, medo ou inquietação na vítima ou lhe prejudiquem a liberdade de determinação, bastando que essas condutas sejam adequadas a provocar tais efeitos no “homem médio”. Não é assim necessário demonstrar que a conduta levada a cabo pelo agente provocou, em concreto, qualquer desses efeitos, mas sim que tais acções são passíveis de os provocar – ou seja, que a conduta perpetrada era susceptível de provocar, no homem médio, medo ou inquietação ou que era passível de afectar a sua liberdade de autodeterminação.
Outra das opções do legislador português foi a definição do delito de forma ampla (ao contrário do que acontece noutros países em que o mesmo é definido através da estipulação das condutas que se consideram ser de perseguição), usando a expressão “por qualquer meio”, podendo o crime ser cometido através de uma multiplicidade de comportamentos. Assim, qualquer que seja o meio utilizado, se a actuação do agente se enquadrar nos conceitos de perseguição ou assédio reiterado e for adequada a provocar medo, inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima, estaremos perante uma conduta de stalking. Exige-se também que tais condutas sejam praticadas de forma reiterada. A reiteração, que se traduz na adopção da conduta típica durante um certo período de tempo, é um elemento constitutivo do tipo objectivo da perseguição e é o que o distingue de outros crimes semelhantes. Refira-se ainda que o legislador previu que as condutas que afectem indirectamente a vítima (quando o agente, de forma a afectar a vítima principal – aquela que de facto pretende perseguir – começa a praticar acções contra pessoas próximas dela) são também puníveis.

Quanto às sanções aplicáveis, elas estão previstas na parte final do artigo 154º-A/1 (prisão até 3 anos ou pena de multa – cujo limite máximo, por força da aplicação do regime regra do artigo 47º/1, pode ir até aos 360 dias de multa segundo o professor Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal: Parte Especial). Estas penas só serão aplicadas se “pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. Isto significa que, estando em concurso dois tipos de crime (por exemplo stalking e homicídio simples), se a pena aplicável a um dos tipos de crime for superior (neste caso seria a de homicídio simples) é essa pena que se aplicará e não a estatuída no artigo 154º-A.
Nos números 3 e 4 do presente artigo estão ainda estipuladas penas acessórias que poderão ser aplicadas ao agente. São elas a proibição de contacto com a vítima (entre 6 meses e 3 anos) que pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e que pode ser fiscalizado através de meios técnicos de controlo à distância, como a pulseira electrónica (meios esses que se encontram previstos no artigo 35º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro). Prevê-se também a possibilidade de aplicação da obrigação de frequência de programas de prevenção de condutas típicas de perseguição. O crime em questão é semi-público, estando o procedimento criminal dependente de queixa (154º-A/5).
Uma nota final para a possibilidade da pena prevista no artigo 154º-A/1 ser agravada. Quando os actos de stalking forem praticados nas circunstâncias previstas no artigo 155ºCP a moldura prevista no número 1 do artigo anterior é agravada para 1 a 5 anos de prisão. Isto acontece se os factos forem realizados por exemplo: contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez (155º/1,b)) ou, se devido a essas condutas, a vítima sobre a qual as mesmas recaíram se suicidar ou tentar suicidar (155º/2). Segundo a grande maioria da jurisprudência, nos casos previstos no artigo 155º, o crime de stalking passa a ser público não sendo necessário a apresentação de queixa para que o processo-crime tenha início (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 284/10.6/GBPRD.P1 de 02/05/2012 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 187/11.7GBLSA.C1 de 10/07/2013).

Resta-nos concluir que a recente criminalização do stalking foi um passo muito importante na defesa dos direitos fundamentais das vítimas, suprindo uma lacuna que existia no nosso ordenamento jurídico e que deixava sem punição comportamentos violadores de bens jurídicos fundamentais, como a liberdade de determinação, a reserva da intimidade da vida privada e a saúde física e psicológica das vítimas.

Foto por Ludovic Toinel em Unsplash

Arquivado em:Direito Penal

Posse e tráfico de arma que não realiza percussão eficaz

30 de Dezembro, 2015 by Carlos Canaes Deixe um comentário

1. Como sabemos, nos termos da alínea p) do art.º 2º, n.º 1, da lei n.º 5/2006 (na versão mais recente que lhe é dada pela Lei n.º 50/2013, de 24/07), entende-se por «Arma de fogo» todo o engenho ou mecanismo portátil destinado a provocar a deflagração de uma carga propulsora geradora de uma massa de gases cuja expansão impele um ou mais projéteis. Igualmente segundo o art.º 2º, n.º 1 alínea x, da mesma Lei 5/2006 é «Arma de fogo transformada» o dispositivo que mediante uma intervenção modificadora, obteve características que lhe permitem funcionar como arma de fogo».

O crime de tráfico de armas é um crime formal de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição e detenção da arma destinada ao tráfico visando-se proteger a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e utilização de armas.

Ora, se uma arma foi transformada, mas não realiza qualquer percussão eficaz, não é suscetível de provocar a deflagração, e em consequência, não integra o conceito de arma para os efeitos de preencher o tipo legal dos crimes de detenção ou de tráfico de armas.

Este mesmo entendimento é sufragado pelo recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-12-2012.

2. A questão que se coloca seguidamente é de saber se esta mesma “arma” que não integra o conceito legal de arma de fogo pode ser traficada , ou seja, se a sua comercialização pode integrar uma crime de tráfico e mediação de armas previsto pelo artigo 87º Nº1 do Regime Jurídico de Armas e Munições.

E quanto a esta segunda questão a nosso ver a resposta não pode deixar de ser negativa, uma vez que se a “arma” não é suscetível de provocar a deflagração  a comercialização não é suscetível de constituir qualquer tipo de perigo para a comunidade – afinal o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.

Foto por Andrey Zvyagintsev em Unsplash

Arquivado em:Direito Penal

Acesso a dados de tráfego e geolocalização em caso de difamação através da Internet

8 de Setembro, 2014 by Ana Rita Mendes Deixe um comentário

Estudei este assunto em 2012 quando um cliente proprietário de um restaurante se confrontou com a publicação num blog da especialidade de várias mensagens passíveis de integrarem o tipo de crime difamação por parte de um anónimo. Com a intenção de avaliar da justeza da pretensão e também da possibilidade de sucesso quanto à identificação do anónimo através do acesso aos dados de tráfego – vulgo obtenção do endereço de IP – por parte do fornecedor de serviços de Internet (vulgo ISP) cheguei à jurisprudência dominante de que tal operação se encontra vedada dado que tal ilícito não consta, nem do catálogo previsto no art.º 187.º do Código de Processo Penal (V. Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 13/11/12).

Ali se defendia que “colidindo a interceção de comunicações com a inviolabilidade dos meios de comunicação privada consagrada no art. 34°, n.°1, da Constituição da República, só sendo a mesma permitida, nos termos do n.°4 da citada norma constitucional, nos casos expressamente previstos na lei de processo criminal, e não constando o crime de difamação do elenco dos crimes que admitem a recolha de prova através da interceção de comunicações, estatuído no n.°1 do art.º 187° do CPP, não seria admissível, através de uma interpretação extensiva, alargar-se tal elenco”, por forma a incluir-se o crime de difamação e em consequência obter os dados de tráfego.

Ao tempo esta jurisprudência foi muito criticada e recordo-me foi geradora de impunidade sobretudo porque no artigo 187º do CPP se mostra previsto, entre outros, o crime de injúria… Dois anos volvido muita coisa mudou na tecnologia e hoje mais do que nunca o assunto tem nova pertinência uma vez que a maioria destas publicações é efetuada por dispositivos móveis, cuja identificação pode ser feita não só através do endereço de IP, mas também da geolocalização (vulgo o GPS dos nossos smartphones). São motivos mais do que suficientes para revisitarmos o tema e verificar o que mudou na jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Como sabemos o crime de difamação encontra-se previsto e punível no nosso ordenamento jurídico, nomeadamente no Código Penal Português.

Artigo 180.º do Código Penal (Difamação)“1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.

  1. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
  2. A boa-fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.”

Assim, “a difamação pode definir-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerram em si uma reprovação ético-social. II – A difamação, segundo a lei, compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém. II – Por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. IV – Por consideração deverá entender-se o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública.” – in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/02/1996.

“O valor da honra, enquanto dignitas humana, «é mais importante que qualquer outro (valor do direito à projecção moral, ou seja, o direito à honra em sentido amplo) e transige menos facilmente com os demais em sede de ponderação de interesses. A conduta antijurídica que lese o bom nome da pessoa através da divulgação pela imprensa há-de ser apta a abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida, não só no seu meio profissional, mas entre os cidadãos em geral.” (Cfr. Acórdão do Supremo do Tribunal de Justiça de 09-09-2010)

A materialidade da conduta traduz-se na afirmação ou propalação de factos inverídicos e sem razão para fundamentadamente serem tidos por verdadeiros e, que sejam susceptíveis de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos à entidade que figura como sujeito passivo.E pode ser dirigida tanto a pessoa singulares como coletivas. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/1960 – “As pessoas coletivas podem ser sujeito passivo nos crimes de difamação e de injúria.”)

Artigo 187.º do Código Penal (Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva)“1. Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”

Importa aqui distinguir entre honra subjetiva e honra objetiva, ou seja, a primeira diz respeito ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si, sendo que, esta representação pode referir-se às manifestações externas da vida de uma pessoa, aos seus hábitos, à sua posição na vida social, quer às suas qualidades espirituais ou físicas, sendo que, a segunda concerne à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, isto é, a consideração, o bom nome e reputação que uma pessoa goza no contexto social envolvente.

Mas sabemos também que a defesa destes valores esbarra muitas vezes com liberdades que damos como adquiridas e que a Constituição protege. O direito à informação e à manifestação livre da opinião ainda que abrasiva no seu conteúdo.

“O direito de informação é um direito constitucional de todos os cidadãos (embora limitado, pelos princípios gerais de direito criminal) A liberdade de reprodução, como liberdade de divulgação, é um direito atribuído e garantido por lei ao jornalista. A ilicitude da reprodução mediática fica afastada quando a reprodução caiba no âmbito do direito de divulgação jornalística e quando a mediatização implementada pelo jornalista respeite os respetivos e específicos deveres profissionais. Quando a mediatização implementada pelo jornalista exceda a crítica lícita ou a prossecução de interesses legítimos, atingindo o visado com a divulgação de determinado escrito, diretamente na sua personalidade, viola o direito do ofendido na sua honra e bom nome, ofendendo, de forma ilegítima a amplitude da sua integridade moral. Tal ofensa integra ilicitude criminal: o crime de difamação tipificado no artigo 180º do Código Penal” – acórdão do tribunal da relação de Évora de 14/06/2005.

A publicação de artigo sobre o restaurante no blog (meio de comunicação social), com uma nota crítica objetiva ainda que negativa não fere assim qualquer dos princípios enunciados. Contudo, se o artigo foi alvo de vários comentários, nos quais foram feitos diversos juízos de valor suscetíveis de colocar em crise a honra do estabelecimento entra em ação a proteção jurídico penal contra a difamação. O problema que se coloca amiúde é que os comentários são feitos anonimamente e o provedor de serviços e o autor da página resistem a indicar o endereço de IP por razões de proteção das comunicações e da própria reserva da vida privada.

No caso do Acórdão supra citada o Ministério Público reclamou por parte do provedor de serviços de Internet a indicação daqueles elementos e ante a recusa desta procurou obtê-los coercivamente. Sem sucesso como lemos do sumário do Acórdão: “Estando em causa investigação por crime de difamação através da internet, não é admissível o acesso a dados de tráfego, por via de autorização judicial, dado que tal ilícito não consta, nem do catálogo previsto no art. 187.º do CPP, nem da definição de crime grave do art. 2.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 32/2008, de 17.07″.

No plano jurídico a questão é esta: pode ou não alargar-se o âmbito das permissões do artigo 187º quanto a prova? É ou não permitida a interpretação extensiva ou a aplicação analógica? A jurisprudência tradicional inclina-se para a resposta negativa. A interpretação extensiva “pode ser amplamente utilizada no Direito Processual Penal, exceto quanto às normas restritivas de direitos subjetivos, ou que tenham natureza excecional. E parece ser este o caso em que se coloca em causa o direito à inviolabilidade das comunicações.

Na primavera de 2013 novo Acórdão sobre matéria conexa – a geolocalização – e nova oportunidade para rever a matéria. Estava em causa a autorização de colação de localizadores GPS em viaturas que presumivelmente seriam utilizadas para a prática de crimes. Agora também a Relação do Porto veio considerar que encontrando-se excluída do catálogo do artigo 187º do CPP a localização GPS também não constitui meio de prova sem prévia autorização judicial (Ac. Relação do Porto de 21-03-2013). Aplicando a questão à difamação não será possível igualmente identificar o autor das mensagem difamantes porque não é possível previamente obter a dita autorização.

Em conclusão, ao contrário da generalidade dos países da União Europeia continua a ser difícil (senão impossível) perseguir o discurso difamatório na Internet perpetrado sob a capa do anonimato. Fica à atenção do legislador!.

Foto por Peter Scherbatykh em Unsplash

Arquivado em:Direito Penal

Direito ao esquecimento em processo penal

24 de Agosto, 2014 by Carlos Canaes Deixe um comentário

Nos últimos anos o desenvolvimento tecnológico pôs em causa o equilíbrio entre liberdade de expressão e privacidade. Este ano o debate fez correr muita tinta.

Tudo começou quando no passado mês de Maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia apoiou uma decisão que chamou de “direito a ser esquecido”, que permite que cidadãos que possam controlar seus dados e pedir aos motores de pesquisa, como o Google, para remover resultados pessoais inadequados. Na decisão do Tribunal Europeu estava em causa obrigar a Google a eliminar a ligação entre um cidadão espanhol Mario Costeja González e o anúncio publicado no jornal La Vanguardia em 1998 sobre um leilão de imóveis para o pagamento de dívidas à Segurança Social em que ele era indicado como um dos devedores.

Na sequência da decisão, o Google apesar de criticar a decisão do tribunal europeu (que só é válida no espaço da União Europeia), prontificou-se a acatar a decisão e disponibilizou um formulário para facilitar o envio de pedidos de esquecimento. Para fazer um pedido de remoção de links, é preciso preencher alguns campos obrigatórios (como o nome, o país de origem e um endereço de correio eletrónico), dizer quais são as páginas que a Google deve deixar de mostrar nas pesquisas e enviar uma cópia de um documento oficial com fotografia (como o cartão do cidadão, o passaporte ou a carta de condução). A quantidade de pedidos não é conhecida quando escrevo estas linhas, apesar de ter já sido noticiado que mais de 70 mil pessoas terão exercido o seu direito ao esquecimento (incluindo 683 pedidos de cidadãos portugueses no início de Julho de 2014 segundo a Exame Informática).

O debate está lançado na sociedade civil portuguesa. Para os defensores da liberdade de expressão censurar a Internet, pode ter o efeito pernicioso de dar novas ferramentas que ajudam os ricos e poderosos a esconder informações negativas sobre eles, e deixando os criminosos fazer as suas histórias desaparecem (exemplo desta situação é o facto de o Google já ter sido obrigado a excluir um link para este artigo absolutamente factual e não difamatório da BBC sobre Stan O’Neal, ex-CEO da Merrill Lynch, que em meados dos anos 2000, terá estado envolvido na crise do crédito hipotecário). Para os defensores do direito ao esquecimento está em causa a ideia de que não há erro que não mereça perdão, e ato relativamente ao qual não seja possível retração, dando-se com frequência o exemplo daquela jovem que publicou fotos suas em atos de intimidade com um namorado com que já não mantém relacionamento e que prejudicam a sua credibilidade quanto a uma oferta de emprego.

A nosso ver, o direito ao esquecimento é incontroverso na maioria das situações que abrange e encontra-se já hoje amplamente reconhecido pelos próprios agregadores de conteúdos. Não parece levantar grandes objeções que alguém que tenha publicado uma foto no Facebook ou um texto num blog tenha o direito de exigir a sua remoção anos depois por se ter arrependido ou já não concordar com o seu conteúdo. Ou mesmo o direito de exigir essa remoção a um terceiro que tenha republicado ou guardado esse conteúdo, sobretudo se ele for ofensivo ou se situar no âmbito da reserva da intimidade vida privada. E também não nos oferece problema o pedido de retirada de um artigo publicado a nosso respeito quando inclua informação falsa, controversa ou especulativa.

Mais difícil de medir no plano da liberdade de expressão parecem ser ou os pedidos de retirada de informação verdadeira ou do livre exercício da opinião nos media (por exemplo no debate politico).

Mas a questão mais sensível e interessante no plano jurídico é a que diz respeito ao exercício do direito ao esquecimento por parte de pessoas condenadas em Tribunal pela prática de crimes. No direito francês por exemplo le droit à l’oubli dá o direito a qualquer cidadão que tenha praticado um crime e cumprido integralmente a sua pena e se reabilitado perante a sociedade o direito de não serem publicitadas a memória dos factos que praticou. Ao contrário nos Estados Unidos o direito à publicação do registo criminal encontra-se protegido pela First Amendment da Constituição Americana. Entre nós não raro vemos divulgada nos media sem qualquer restrição ou rigor não só o relato de factos passados como atos processuais praticados no decurso do processos já findos (e que em alguns casos se traduziram na absolvição dos visados).

A meu ver, há um limite para o direito ao debate público sobre crimes praticados em que os delinquentes já cumpriram integralmente as suas penas, que deveria variar consoante a gravidade dos crimes (excluiria os crimes sexuais) e não ultrapassar 5 anos após a reabilitação. O princípio civilizacional da reabilitação que aceitamos como central no nosso direito penal e processual penal, com influência na gradação da penas e na sua execução, deve significar que alguém que num determinado período da sua vida praticou um ato reprovável do ponto de vista social não mantenha esse anátema para o resto da vida.

Arquivado em:Direito Penal

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